A função artista do analista

(Alias: Antonio Barranca | Rita Cesaroni | Barbara Cipolla | Claudia Ledda | Stefania Lo Basso)

“A percepção do mundo externo é, por si, um ato criativo, um ato de imaginação (…). Com efeito, sem a imaginação não conseguiríamos ver aquilo que está lá para ser visto.”

(Marion Milner 1957)

Introdução

Nossas reflexões derivam do trabalho de confrontação levado adiante por um grupo de psicoterapeutas com formações distintas e contextos de trabalho heterogêneos. As situações clínicas concretizam-se em necessidades e "linguagens" diferentes e específicas, que nos levam a nos interrogar constantemente sobre como assumir e manter uma postura mental analítica e sobre como construir a possibilidade de um encontro que seja experiência transformadora para os dois participantes.

A organização mental e a criatividade do analista são solicitadas com mais afinco, sobretudo diante de um “não dito” que procura ser “falado”: momentos, fases ou tipologias de relação em que o paciente serve-se prevalentemente de sinais incoativos, indefinidos e implícitos, que buscam uma forma, em que se anima uma parte ainda não nascida do pensamento que, às vezes, consegue até se fazer imagem, gesto, som ou palavra, e outras não. É através de uma maior atenção à própria vertical, às vezes alertada por sensações provenientes do corpo, outras vezes por emoções que, em alguns casos, podem ser perturbadoras, em função de sua difícil colocação no aqui e agora vivido no encontro, que o analista pode elaborar criativamente suas proposições (Ferrari, 1983) e disponibilizar ao analisando meios expressivos compatíveis com quanto vai coletando em forma preliminar e não saturada.

Bion fala em “função artista” (1992) do analista, isto é, uma função analítica capaz de sustentar com sua criatividade o “artista interno” do analisando, aquele que edifica a própria mente. Encontramos um nexo que, na nossa opinião, é significativo entre essa função criativa e o conceito de by-pass (Ferrari, 1992) em que, quando a atividade mental exclui a área sensorial e aquela emotiva, é necessário reestabelecer uma relação significativa entre o dado sensorial e o pensamento que permita assumir novas vertentes de observação. Desta forma, é possível realizar a pensabilidade das percepções e a aprendizagem da experiência no aqui e agora da sessão. Esta ponte faz com que o analisando “tolere com menor angústia fatos, situações e acontecimentos de sua experiência de vida e assumir com responsabilidade a si próprio" (Ferrari, 1992, pág. 84, tradução livre).

Tese

Sabemos que a relação entre dimensão observável e não observável da vivência própria e dos outros, assim como a fisicidade enquanto constante norte do processo de conhecimento, são pontos focais para ambos os protagonistas do encontro: cada um é depositário de uma “narração originária” da qual emana uma modalidade de abordagem do mundo (Ferrari, Garroni, 1983). Se o encontro com o outro é um encontro “analítico”, no sentido que permite fazer experiência de si, é por si só um encontro de transformação. E a trilha privilegiada para criar a ocasião de experiência de si é aquela criativa.

Consideramos criativo tudo aquilo que, com o fito de ouvir o outro, lança mão das solicitações sobre sua própria vertical, gerando assim, em primeiro lugar, certa transformação de si. A contribuição oferecida na relação é, portanto, ao mesmo tempo emanação da própria narração originária e já tentativa de reelaboração da mesma.

Bion fala de um aspecto “artístico” da função analítica, e com isso refere-se à capacidade de concentrar a história da análise em um único ponto, o aqui e agora do encontro, eliminando memória, desejo e compreensão, para comunicar com eficácia um novo ato comunicativo criativo. A escuta artística do analisando pressupõe um analista-intérprete que deva ser, em certa medida, “artista”, que saiba colher o momento certo para intervir e calibrar o gesto.

Nesta mesma linha, A.B. Ferrari afirma que o analista conhece somente aquilo que contribui a criar no momento da sessão. O instrumento principal do qual dispõe para poder alcançar a realidade psíquica do analisando, para dar-lhe suporte em seu assumir a si próprio, é a construção, junto com o analisando, de uma linguagem comum. No cuidado constante do próprio ajuste criativo, o analista revela e ativa, ao mesmo tempo, contribuindo à sua construção, a linguagem individual de cada um. O processo criativo consiste, portanto, mais em um “devir” do que em um “conhecer”, já que contém os momentos germinativos, inefáveis, da experiência emocional, os momentos mais ricos de potencialidades evolutivas.

Ilustrações clínicas

Expomos aqui breves trechos de trocas entre analista e analisando para ilustar aquilo que pretendemos dizer.

Vinheta 1

Garoto com 15 anos, na metade da sessão me diz: “Estou com fome e não consigo pensar! Não como nada desde ontem, mas não faz mal”. Interrompo o trabalho e decido oferecer-lhe um pedaço de chocolate. Comemos juntos  e falamos de seus sentidos, de como saboreia as coisas, se as aprecia ou se engole sem perceber; falamos de como percebe se seu corpo lhe pede algo, se ele sabe algo de seu corpo.

Vinheta 2

A., 13 anos, há várias semanas não consegue ir à escola: de manhã passa mal, vomita, tem fortes dores abdominais. Um rapaz alto, bonito, com cabelos compridos e roupas à moda, o celular sempre na mão, diante de nós. As palavras saem com dificuldade, formular-lhe uma pergunta é quase uma violência. Encerrado em um corpo bonito e atlético, esconde-se uma alma de criança que brinca o dia inteiro com seus cachorros, sentindo-se ao abrigo de qualquer estímulo que gere ansiedade. Longos silêncios carregados de angústia. Algo muda quando olho para seu celular e, intuitivamente, digo em voz alta, como se falasse comigo mesmo, que "é útil ter imagens sempre à mão, com o celular, o meu tinha muita memória mas agora esgotou". Então, Alex decide, de sua iniciativa, de mostrar-me uma foto de seus cachorros no celular. Dir-se-ia que diante de nós abriu-se um amplo espaço onde é possível que algo ganhe forma. Provavelmente, registrara uma proibição (que eu não tinha colocado) quanto ao uso do celular, assimilando o encontro comigo à escola. Espanta-me a atitude diferente, a tranquilidade em relação a poucos instantes antes, quando estava fechado, dobrado sobre si mesmo. Sorrio por dentro, pensando a como é estranha esta situação. Quem poderia imaginar que o celular teria sido o meio de nossa comunicabilidade! Nosso espaço de conversação é inaugurado com seus quatro cachorros: como comem, como brincam, que relações têm entre eles e com as pessoas, da família ou não, como nascem os filhotes e como os criam... Algo ganhou forma e está repleto de vida. Algo que parecia razão de transtorno, na mente do analista ganha um renovado valor.

Vinheta 3

R., uma mulher de 33 anos, parece não possuir um léxico apto a descrever aquilo que acontece dentro dela. Exibe uma fachada que percebo sempre forçadamente coerente com aquilo que diz e destoante com as sensações que vivencio na presença dela. O olhar sempre maravilhado, o sorriso amiúde em contradição com aquilo que observo nos demais movimentos de seu corpo. Parece-me uma cortina de teatro atrás da qual se esconde um caos tenebroso. Em ocasião de um dos primeiros encontro, ressinto uma forte sensação em nível corporal, uma sensação de nudez, como se tivessem tirado de mim uma camada, extraído de uma casca, e me vem à mente a imagem de uma lembrança pessoal de quando, pela primeira vez, vi minha filha, nascida prematura, no berço térmico, e não pude tocá-la.  Alguns meses depois, a paciente (ilustradora de profissão) traz à sessão os desenhos do ovo, primeiro um ovo quebrado na boca do dinossauro, sucessivamente a mulher aninhada nas cascas-útero.

Fig. a-b-c-

Nas nossas sessões, fui socorrido pelo poeta R.M. Rilke, com esta imagem poética: “Pois o belo nada mais é do que o começo do Terrível que ainda suportamos”. (Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, Elegia I, traduzida por Karlos Rischbieter). O uso de uma frase poética, que é uma linguagem para R. congenial e esteticamente aceitável, facilitou um insight de como o belo (que ela limitava apenas ao mundo fantástico) fosse, na verdade, um continuum com todo o resto e fosse também susceptível de gerar incômodo, não apenas prazer.  Esta proposição ofereceu uma capacidade nova de gestação e germinação de um pensamento que contemple uma relação vital entre aquilo que o mundo oferece em suas várias nuances e aquilo que ela própria cria. Com o tempo, mudaram os traços, os conteúdos, as modalidades, as formas do desenhar e do falar. Alguns trabalhos mais recentes são autorretratos em preto e branco.

Fig. d-e

Uma vivência pré-verbal encarna-se no concreto para ser comunicada: um coágulo do sentir “é dito” em forma de sinestesias, cores, gestos, ações.

No último caso, o analista utiliza as imagens como uma sonda, para solicitar a passagem rumo a uma linguagem apta a pensar e comunicar as próprias vivências, em uma tentativa de aproximação, nunca plenamente alcançável, à própria narração originária. Em outros casos, como nos dois aqui apresentados, o by-pass de uma área da mente não representável a outra com maiores possibilidades de representação, deu-se através do uso de alimentos, fotos, celular, videogames, filmes, objetos trazidos à sessão.

Mas aquilo que entendemos destacar, de modo mais geral, é a especificidade da postura mental do analista, que pensamos residir em geral numa espécie de densidade sensorial-emocional, na qual possa reverberar, como numa caixa de ressonância, o ponto de urgência do outro. A reverberação desta “urgência” e a experiência de si no terapeuta, favorecem a passagem do não dizível e representável à experiência de si, mediante uma síntese interna que se traduz na proposta criativa ao outro.

Para inaugurar ulteriores reflexões e não concluir…

Como dizia Bion, o paciente é o único que conhece os fatos e que sabe o que signifique ser si mesmo; acolher as provas de algo que chega aos nossos sentidos, inventar continuamente novos meios, usar modo  forma daquilo que acontece (lançando mão da área das cores, dos sons e das imagens...), são os instrumentos que temos para ouvir aquele pré-verbal inacessível ao paciente. O pensamento analítico, inspirado pela sua criatividade, pode transformar os sentidos em “sentido”, sublimar o corpo em palavra, dar uma forma pensável e dizível ao caos e à experiência não mentalizada.

Conclusões

Assim, o trabalho criativo, em que revestem um papel fundamental os órgãos de sentido, consiste no suporte prestado à mente no processo de transição do sensorial ao representacional. Nesta perspectiva, as formas linguísticas, narrativas, figurativas, não são apenas instrumentos para comunicar um pensamento, mas dispositivos para gerar um pensamento, a partir de um saber no plano sensorial-perceptivo para chegar a um “saber de si”.

O analista, ao apurar sua receptividade sensorial e estética e ao organizar estímulos sensoriais que podem não ser relevados conscientemente pelo analisando, mesmo pertencendo a um campo sensorial comum, pode oferecer à mente do analisando a ocasião para ouvir e dar voz a partes ainda não desvendadas de si, construindo imagens, histórias, metáforas com ele, partindo, vez após outra, de sons, cheiros, gestos presentes no aqui e agora da sessão. Esta forma preliminar de conhecimento, que requer uma representação verbal, pode reativar a experiência do corpo no analisando, com suas memórias implícitas, e ajudá-lo a tornar representável o que emerge da área entrópica (Ferrari, 2004).

REFERÊNCIAS

  • Bergerone C., Radano D., Tauriello S. (a cura di), (2013). Instabili equilibri. Cafoscarina.
  • Bion W.R., (1992). Attenzione e Interpretazione Roma  Armando Editore.
  • Bion W.R. (a cura di F. Bion), (2005). Seminari Tavistock. Borla.
  • Ferrari,A.B., Garroni, E. (1983). La narrazione originaria. La temporalità nella relazione analitica e nel racconto.  Psicoanalisi e narrazione, n.2.
  • Ferrari A.B., (2004). L’eclissi del corpo. Roma  Borla.
  • Ferrari, S., (1998). L’alba del pensiero. Roma  Borla.
  • Ferrari A.B., (2005). Il pulviscolo di Giotto. Milano  Franco Angeli.
  • Bion W.R., (1985). Seminari Italiani. Borla.
  • Carignani P., Romano F. (a cura di) (2006). Prendere corpo. Milano  Franco Angeli.
  • Chasseguet-Smirgel J., Per una psicoanalisi dell’arte e della creatività, Raffaello Cortina, 1989
  • Ciocca A., Ginzburg A., Cataldi D., Chiarelli M.P. (a cura di), Per una relazione analitica a misura del paziente, Franco Angeli (2016)
  • Di Benedetto A., Prima della parola. L’ascolto psicoanalitico del non detto attraverso le forme dell’arte, Franco Angeli, 2000
  • Kandel E.R., L’età dell’inconscio. Arte, mente e cervello dalla grande Vienna ai nostri giorni, R. Cortina, 2012
  • Milner M., La follia rimane delle persone sane , Borla Roma ( traduzione italiana 1992)
  • Neri C., Correale A., Fadda P. (a cura di), Letture bioniane, Borla, 1987
  • Rilke R.M,  Elegie Duinesi, Feltrinelli Milano (Traduzione italiana 2006)

RESUMO

Consideremos adquirido, segundo a hipótese de Armando Ferrari (1983), que a relação analítica seja um espaço compartilhado em que os protagonistas da relação decidem encontrar-se, no hic et nunc, para oferecer ao analisando ocasiões de pensabilidade de si e de sua experiência. E admitamos que isso possa acontecer somente mediante um encontro em que cada interlocutor co-constrói uma experiência de si, em um movimento bidirecional: em direção a si mesmo e em direção ao outro.

Com este pôster pretendemos analisar um aspecto do trabalho analítico que corre o risco de fugir a uma dimensão reflexiva que reconheça seu valor e sua natureza processual transformadora: os processos criativos do vértice do analista. Gostaríamos de destacar sua força e, ao mesmo tempo, sua especificidade, que acreditamos gerem uma espécie de “saber sensorial” disponibilizado pela corporeidade (vertical do analista), fonte primária do pensamento, que pode se tornar um instrumento de conhecimento e/ou “intermediário” no encontro analista-analisando.

ABSTRACT

According to Armando Ferrari’s hypothesis (1983) we assume that the analytic relationship is a shared space in which the protagonists of the relationship choose to meet each other  here and now, to offer the analysand opportunities to think about his own self and    experience. This can only happen through an encounter in which each interlocutor co-constructs an experience of himself, in a bidirectional movement towards himself and towards the other.

In this report we want to examine an aspect of analytic work that risks avoiding a reflective dimension that might recognize its value and his trasformative process: the creative processes from the analyst’s vertex. We would like to highlight its strength and simultaneously its specificity, which we think originates from a kind of “sensorial knowledge” made available by the corporeity (analyst’s vertical), primary source of thought, which can become a cognitive tool and/or “intermediary” in the analyst-analysand encounter.

RESUMEN

Siguiendo la hipótesis de Armando Ferrari (1983), que la relación analítica es un espacio compartido en el cual los protagonistas de la relación eligen encontrarse, para ofrecer al analizado oportunidades de reflexión sobre sí mismo y sobre su propia experiencia. Esto solo ocurre a través de un encuentro en el cual cada interlocutor construye una experiencia de sí mismo, un movimiento bidireccional: hacia sí mismo y hacia el otro.

En este artículo queremos examinar un aspecto del trabajo analítico que corre el riesgo de escapar de una dimensión reflexiva que reconoce la valencia y el proceso transformativo: los procesos creativos desde el vértice del analista. Quisiéramos evidenciar la fuerza y la especificidad que pensamos provenga de una especie de “conocimiento sensorial” puesto a disposición de la corporeidad (vertical del analista), fuente primaria del pensamiento la cual puede convertirse en una herramienta cognitiva y/o “intermediaria” en el encuentro analista - analizado.